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Campanha Eleitoral: Prestação de contas e a inconstitucionalidade do limite para as doações estimadas.

Sabe-se que no Brasil, a “Lei das Eleições” – Lei nº 9.504/97 – representou grande avanço na sistematização do assunto, vez que elencou num mesmo diploma legal toda a matéria pertinente ao pleito.

Interessa-nos, neste momento, analisar os dispositivos relativos à prestação de contas de campanha. Mais precisamente: analisar os limites impostos pela lei para doações aos candidatos e aos comitês financeiros de campanha.

Vale ressaltar que o tão comentado e almejado financiamento público de campanha, segundo dispõe o artigo 79 da Lei 9.504/97, será disciplinado em lei específica. Tal matéria compõe o pacote legislativo intitulado de “reforma eleitoral”, do qual muito se houve falar, mormente em anos eleitorais, mas que efetivamente pouco evoluiu.

O financiamento de campanhas eleitorais, pode-se afirmar sem sombras de dúvidas, sempre foi o calcanhar de Aquiles da Justiça Eleitoral, tendo em vista a grande dificuldade em se coibir a existência de contabilização paralela de recursos, além de fomentar o abuso de poder econômico nas eleições.

Nesse contexto, a Lei 9.504/97 representa relevante avanço na sistemática de arrecadação e aplicação de recursos nas campanhas eleitorais, de forma a coibir abusos e prever a observâncias de princípios e mecanismos que privilegiem a moralidade e proporcionalidade nas eleições.

A Lei 9.504/07 trata da “arrecadação e da aplicação de recurso nas campanhas eleitorais” em capítulo próprio (artigos 17 e seguintes) e nas disposições transitórias (artigos 79 e seguintes). Temos ainda a matéria tratada de forma detalhada nas Resoluções emitidas pelo Tribunal Superior Eleitoral, tais como a RES.TSE 22.715 para as eleições municipais de 2008 e RES.TSE 23.217 para as eleições gerais de 2010.

A arrecadação de recursos de campanha se dá principalmente por meio de doações de pessoas físicas e jurídicas, em pecúnia ou em valores estimados decorrentes da prestação de serviços ou destinação de bens á campanha.

Visando coibir abusos nas eleições, o legislador pátrio determinou na Lei 9.504/97 limites às doações. Em se tratando de pessoas físicas dispôs no artigo 23, §1º, I, sobre o limite de 10% (dez por cento) dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição. Quanto a pessoas jurídicas a matéria veio tratada no artigo 81, §1º, que dispôs que as doações e contribuições ficam limitadas a dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição.

Vê-se que tanto pessoas físicas como jurídicas podem contribuir para as campanhas eleitorais nas formas previstas: em dinheiro ou estimando bens e serviços em dinheiro.

A discussão que propomos nesse momento é sobre o limite de doação para pessoas físicas, em contribuições estimadas em dinheiro por serviços prestados a candidatos ou comitês financeiros de campanha.

A propósito do assunto, verificamos, em relação a eleição municipal de 2008, o posicionamento de algumas Procuradorias Regionais Eleitorais, dentre as quais a do Estado de São Paulo, que, fazendo uma leitura literal dos dispositivos legais, entendeu pela aplicação do limite previsto em lei – 10% dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição – para todos os casos indistintamente, ou seja, englobando pessoas físicas que tenham prestado serviços a candidatos ou comitês de campanhas eleitorais.

O entendimento das Procuradorias Regionais Eleitorais importou no ingresso de várias representações eleitorais visando a aplicação de multa por excesso de doação em face de pessoas físicas que não obtiveram rendimentos no ano anterior a eleição.

Partiu-se da premissa de que a pessoa que não obteve rendimento bruto no ano anterior a eleição, teria como parâmetro para estimar suas contribuições a base de R$ 0,00 (zero real). Por simples operação percebe-se que as pessoas sem rendimentos estariam impedidas de contribuir nas campanhas eleitorais, pois 10% do rendimento do ano anterior resulta em R$ 0,00.

Temos que tal entendimento e conclusão não se coadunam com o estado democrático de direito, com a democracia participativa, com o pluripartidarismo, com o direito fundamental de defesa de ideais políticos e ideológicos, com a dignidade humana e com princípios atinentes a república e a cidadania.

Data maxima venia, não se concebe a leitura e interpretação literal, dissociada da realidade e dos princípios constitucionais, dos dispositivos legais que limitam as contribuições para as campanhas eleitorais.

Frise-se, desde já, que não se discute a aplicação dos limites de contribuição para doações realizadas por pessoas físicas e jurídicas em pecúnia ou estimadas em bens. É certo que tais limites representam avanço no financiamento das eleições e merecem fiscalização detidas da Justiça Eleitoral e das Procuradorias Regionais Eleitorais.

Entretanto, o mesmo raciocínio não pode ser aplicado em se tratando de contribuição realizada por pessoa física, na qual se tenha estimado em dinheiro serviços prestados pela própria pessoa em prol de determinado candidato, partido ou comitê de campanha.

Não cabe na discussão proposta a aplicação da interpretação literal e abstrata dos dispositivos legais, devendo ser aplicada a interpretação sistemática, fundada em métodos hermenêuticos concretos, visualizando-se a problemática em cotejo com as normas constitucionais e com todo o ordenamento jurídico.

Voltemos ao cerne da discussão: aplicação do limite de 10% para contribuições em serviço, estimadas em dinheiro, realizadas por pessoas físicas.

Defendemos que a imposição de limites para contribuições pessoais, em serviço, é inconstitucional, pois fere diretamente a dignidade da pessoa humana, além de outros princípios e direitos fundamentais assegurados na Constituição da República.

Interpretação diversa importa em concluir que pessoas com pequeno ou nenhum rendimento monetário, não tem direito de participação política e de defender suas convicções políticas e ideológicas.

Imaginemos, pois, um jovem e recém formado advogado, militante político, que não tenha tido rendimentos financeiros no ano anterior à eleição e se disponha, defendendo os ideais de determinada agremiação partidária, ingressar na campanha política e, com contribuição de seus preciosos serviços, represente o partido em determinada eleições. Ao final, em respeito ao ordenamento jurídico declare, de forma estimada, quanto equivaleria os serviços por ele prestados na campanha.

Imaginemos ainda, uma pessoa desempregada há vários anos, descontente com os rumos da política nacional, com a política de geração de emprego, com os escabrosos casos de corrupção que assolam o cenário político brasileiro, que vislumbre com o novo pleito se empenhar em prol de determinado candidato ou segmento partidário ideológico, prestando serviços na campanha em todo o período eleitoral (por 3 meses), e assim o faça e declare mediante recibo de doação de seus serviços pelo valor de mercado.

Em se aplicando a interpretação literal, como de fato o fez algumas Procuradorias Regionais Eleitorais, implicaria em reconhecer que os cidadãos fáticos dos exemplos acima incidiram em ilícito administrativo e estariam a mercê da Justiça Eleitoral, sem rendimentos, obrigados ao pagamento de multa equivalente a 5 (cinco) a 10 (dez) vez o que exceder ao 10% que poderiam doar por direito (artigo 23, §3º da Lei 9.504/97).

Tal interpretação significa reconhecer que o cidadão que não teve renda declarada, seja por qualquer motivo, o cidadão pobre, não tem direito a participação política efetiva na construção de seus ideais e convicções políticas da nação.

Convém salientar que a República Federativa do Brasil, tal como delineada pela Constituição cidadã de 1988, está fundada em princípios sólidos da cidadania e da dignidade da pessoa humana (artigo 1º), bem como pauta-se dentre seus objetivos pela construção de uma sociedade justa, livre e solidária (artigo 3º) e na defesa dos direitos fundamentais de liberdade e da igualdade substancial.

A premissa constitucional fundada na cidadania, na dignidade da pessoa humana e no princípio da igualdade não permite que se tolha do cidadão o direito de participação efetiva na vida política nacional, em detrimento de imposições legais abstratas e totalmente dissociadas dos princípios constitucionais e do estado democrático de direito.

Reafirmamos que, não se concebe que se crie, em detrimento dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, uma classe de cidadãos com menos direitos em relação aos outros, classificados exclusivamente por critérios de rendimentos econômicos.

Concluímos, assim, que o limite imposto pelo artigo 23, §1º, I da Lei 9.504/94, em relação a doações em serviço estimadas em dinheiro, prestadas por pessoa física, é a priori inconstitucional, pois contradiz os fundamentos e princípios constitucionais do Estado Democrático Brasileiro.

Alexsandro Silva Trindade.

Comentários

  1. Ótimo texto. Nunca analisei este artigo 23, §1º da Lei 9.504/94.
    A leitura deste texto também nos remete ao financiamento público das campanhas eleitorais, em um primeiro momento, "soa" muito estranho, acarretaria em mais "contribuições", entretanto, entendo ser um firme passo à moralização das campanhas eleitorais, pois, inevitavelmente, os candidatos atrelam os respectivos doadores a seus interesses.
    Isto posto, o que parece ser mais um gasto para o contribuinte, desencadearia na realidade, governos mais transparentes e consequentemente, mais investimentos na área social.
    Fábio Arjonas

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  2. Paulo Roberto Nascimento18 de outubro de 2010 às 21:48

    Alex, parabéns pelo artigo!
    Realmente, após primorosa análise tenho que concordar que sua conclusão é real, prima pela veracidade dos fatos dentro da nossa realística material e nos faz pensar melhor sobre nossa realidade formal. Tentarei compendiar... em 2006 a aplicação mitigada das inovações advindas da Lei 11.300 acendeu uma luz amarela no cenário político nacional no quesito prestação de contas partidárias. Em 2008 houve um pequeno avanço, principalmente das análises técnicas dos estudiosos analistas judiciais nas orientações aos juízes eleitorais em primorosas decisões que a princípio foram acolhidas em superiores tribunais... e aqui faço minha primeira crítica: infelizmente nossos tribunais superiores eleitorais se compõem para atuar somente por 2 (dois) anos... falta consistência decisória! Os posicionamentos jurisprudenciais não se atualizam por falta de constância de pensamento dos responsáveis por emissões de acórdãos... Seguindo, após o acolhimento da Lei 12.034 nas últimas eleições de 2010, acredito que ainda estamos num limbo processual eleitoral. Candidatos que não prestaram contas em 2008, ou tiveram suas contas reprovadas deveriam ou não participar das Eleições 2010! Eu queria acreditar que não participariam, mas o que ocorreu e ainda está ocorrendo, os diversos Tribunais Regionais Eleitorais "acordaram" das mais variadas formas... e o que o Tribunal Superior Eleitoral também está sinalizando: "pizza"! E aqui faço minha segunda crítica: a base eleitoral, as zonas eleitorais, seus técnicos judiciários, seus analistas judiciários, muitos juízes eleitorais acreditam e fazem o melhor dentro da técnica jurídica eleitoral... já os tribunais superiores procuram fazer o melhor dentro de uma técnica ilógica política... é meu pensamento, sem com isso jogar água fria nas poucas cabeças pensantes dentro do sistema eleitoral, como você, ao contrário, que minha crítica te fortaleça mais ainda para, aos poucos, podermos mostrar a alguns trogloditas que infelizmente operam em nossos superiores tribunais a quem sabe buscando um pouco de sofisma e humildade, olhar para quem realmente vive e entende de pretação de contas partidárias: quem vive nas zonas eleitorais são os que realmente vivenciam a realidade eleitoral no balcão de atendimento.
    Parabéns!

    Paulo Roberto Nascimento

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  3. Olá!

    Realmente, partindo dessa limitação, a conclusão inevitável é que pessoas sem rendas não podem "doar" em forma de prestação de serviço para uma campanha eleitoral! A intenção da lei é louvável, mas na prática realmente se cria tal problema apontado com acerto!
    Abraços!! Ótimo texto!
    Juliana Dalla-Rosa

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  4. Alex, concordo com sua idéia em tese, realmente viola o espírito constitucional da participação política e da dignidade do cidadão em exercer sua cidadania política.

    Mas, por outro lado penso que o brasileiro carece de ideologia política, ninguém trabalha totalmente e integralmente para uma campanha porque acredita na ideologia do partido e do candidato, se assim o faz é porque tem algum interesse, seja porque trabalha para interesses próprios, seja porque é pago por fora pelos partidos. Não gosto de ser descrente e nem generalizar, mas o que vejo dos brasileiros (das camadas mais populares as mais favorecidas) é que nós só pensamos em nós mesmos e que não ligamos para as coisas que acontecem ao nosso redor, pensamos que somos imunes a essas escilhas ou más participações políticas-partidárias.
    Assim, gostaria de acreditar que todos que doam serviços a alguma campanha política (tanto de quem tem renda como de quem não tem renda)doa porque acredita na ideologia e na CR, mas sei que não é assim.
    Solução para isso?? Não sei, nosso pluralismo e ecletismo social-etnico-ideológico é uma grande dificuldade para trçarmos nossos paradigmas de inconstitucional, legal, ilegal ou inconstitucional.

    Um abraço amigo.

    ass: HUGO BEZERRA DE OLIVEIRA

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