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A indústria inversa do dano moral e a banalização do instituto.

É corrente no meio jurídico, não sem razão, discussões acerca da banalização do instituto do dano moral, intitulada de: “indústria do dano moral”. Argumenta-se que o judiciário, em muitos casos, é abarrotado de demandas aventureiras em que as partes tentam, de algum modo, se valer do processo como de fonte de enriquecimento.

As críticas, diga-se desde já, são pertinentes e merecerem a devida atenção dos operadores do direito, pois não é aceitável que o processo e o Poder Judiciário sejam fontes de enriquecimento sem causa a quem queira criar factóides e justificar pretenso sofrimento e atentado à sua honra.


Pertinentes as ponderações da magistrada Dra. Rosangela Carvalho Menezes - TJ/RS ¹, ao destacar que: “deve ser desencorajada a proliferação da indústria de dano moral que atualmente ocorre, havendo exacerbado número de demandas da espécie em nossos tribunais e, na maioria das vezes, desacompanhadas de justa causa”.


Não se discute a existência da cultura da “indústria do dano moral” e da banalização do instituto. Nesse contexto, visando a desestimular o ingresso de ações infundadas e a não gerar o enriquecimento indevido da parte, a resposta do Poder Judiciário, na prática, têm refletido na redução dos valores das condenações atinentes ao dano moral.


Este parece ser o cenário enfrentado pelos operadores do direito, sobretudo pelos magistrados, a quem cabe, em última análise, o sopesamento dos fatos e a quantificação ponderada dos valores das indenizações.


Entretanto, as discussões costumam ser tratadas de forma estanque e limitadas a criticar a existência e combate da “indústria do dano moral”. Não obstante a pertinência dos argumentos e o cenário exposto resumidamente acima, há a necessidade de fomentar o debate e rediscutir o papel das indenizações amparadas em dano moral.


Goethe observará, há tempos, que: “antigos fundamentos se honram, mas não se pode abdicar do direito de, em algum lugar, começar tudo outra vez”. É nesse contexto, pensamos nós, que o tema mereça ser rediscutido no tocante a caracterização do dano moral, finalidade do processo e a finalidade da indenização imposta.


Dano moral, conceituado de forma simples, é aquele que atinge exclusivamente os sentimentos pessoais da vítima. Carlos Alberto Bittar diz que: “são lesões sofridas pelas pessoas físicas ou jurídicas, em certos aspectos de sua personalidade, em razão de investidas de outrem. São aqueles que atingem a moralidade e a afetividade das pessoas, causando-lhes constrangimentos, vexames, dores, enfim, sentimentos e sensações negativas”. No mesmo sentido o ensinamento de Caio Mário da Silva Pereira, para quem o dano moral é: “qualquer sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária e abrange todo o atentado à sua segurança e tranqüilidade, ao seu amor-próprio estético, à integridade de sua inteligência, à suas afeições, etc...”


A indenização do dano moral, por sua vez, tem como objetivo oferecer uma compensação, e não a reparação do dano, propiciando a atenuação do sofrimento. Figuram na doutrina e jurisprudência, como critérios para a fixação do dano moral, dentre outros, os seguintes aspectos: - circunstâncias do fato; - gravidade do dano e sua repercussão; - situação econômica dos envolvidos; - gravidade da culpa (lato sensu); - sofrimento enfrentado pela vítima; ocorrência de culpa concorrente.


Portanto, o caráter punitivo da indenização deve considerar o sofrimento enfrentado pela vítima, a conduta do causador do dano, sem desviar-se do aspecto pedagógico da medida, a fim de desestimular o agente “agressor” à prática de novos atos lesivos.


Antônio Jeová dos Santos sintetiza com maestria: “se a indenização não contém um ingrediente que obstaculize a reincidência no lesionar, se não são desmanteladas as conseqüências vantajosas de condutas antijurídicas, se renuncia à paz social. A prevenção dos prejuízos, que constitui um objetivo essencial do direito de danos, ficaria como enunciado lírico, privado de toda eficácia”.


A fixação do dano moral, do quantum da indenização, não se revela matéria simples. Deve o julgador levar em consideração a extensão do dano, atendo-se a um valor que, numa ótica, não acarrete o enriquecimento indevido da vítima, e que, por outro lado, tenha caráter pedagógico e desestimule o causador do dano e reincidir no ato.


Entendemos que é nesse contexto que deve ser debatida a existência da “indústria do dano moral”, da banalização do instituto, da multiplicação de processos que assolam o Poder Judiciário.


Vimos que, como resposta à indústria do dano moral, o Poder Judiciário tem limitado os valores de indenizações. Ocorre que ao fazê-lo, de forma obliqua, têm sustentado a manutenção da ocorrência e a reincidência de atos ilícitos, que, de uma forma ou de outra, refletirão no número de ações propostas.


Queremos atentar que, não alcançando a indenização um valor que reflita o caráter pedagógico que dela se exige, de modo a desestimular a reincidência pelo infrator, estar-se-á fomentando uma “indústria inversa do dano moral”, com consequências tão nefastas quanto àquelas alegadas na banalização do dano moral.


Essa situação nos parece bem clara em se tratando do mercado de consumo. Podemos afirmar, sem sombras de dúvidas, que um grande contingente de ações que assolam o judiciário, mormente os Juizados Especiais, decorrem de atos de grandes empresas que, em detrimento do consumidor, cometem atrocidades tais como: cobranças indevidas, não prestação do serviço, não atendimento pós venda, produtos ou serviços defeituosos, apontamentos indevidos em cadastro de devedores e protestos etc.


Podemos afirmar, ainda, que as demandas que versam sobre danos morais e que envolvam, por exemplo, grandes empresas de telefonia fixa ou móvel, bancos, financeiras, concessionárias de serviços públicos, construtoras, seguradoras etc, são repetitivas e decorrem da má prestação do serviço ou da imposição do poderio financeiro em detrimento do consumidor. Não é por outro motivo que são as empresas desses setores as líderes de reclamações perante o PROCON.²


É certo que uma condenação de valor ínfimo, ainda que amparada na justificativa de não acarretar o enriquecimento da vítima, não é capaz de desestimular a forma de atuação das grandes empresas, e também significa a banalização concreta do instituto do dano moral, além de fomentar inversamente a “indústria do dano moral”.


Condenações por danos morais decorrentes de apontamentos indevidos em cadastros de restrições de créditos, protestos e cobranças indevidas, como se vê na prática, em valores de R$ 500,00 (quinhentos reais), R$ 1.000,00 (mil reais), por exemplo, são inócuas e figuram como um autorizativo às grandes empresas de que seus atos, ainda que ilícitos ou questionáveis, são amparados pelo Estado. Ou seja, considerando-se a lógica do mercado, a qual prima pelo alcance do resultado mais lucrativo, chega-se a conclusão de que vale a pena a empresa impor uma política que desrespeito aos direitos do consumidor, ainda que isso lhe valha algumas condenações, pois o saldo final – ponderando valores dispendidos com condenações e valores que recebeu de forma abusiva – lhe é positivo. A questão é de lógica!


Não é por outro motivo que as grandes empresas figuram entre os maiores litigantes (litigantes do setor privado) com ações que versam, na sua grande maioria, sobre fatos análogos.


Assim, quando se debate a banalização e a indústria do dano moral, não podemos nos restringir à primeira discussão – aquela que visa a expurgar ações indevidas e aventureiros –, e sim ir adiante e questionar que o sistema de fixação – definição do quantum debeatur – do dano moral é falho e tem estimulado a ocorrência de abusos de direitos e atos ilícitos.


Não se discute a dificuldade prática em alcançar um valor que, ao mesmo tempo, reflita punição a uma grande empresa, sem que isso acarrete a enriquecimento da vítima. Já dissemos que essa ponderação não é simples ao operador do direito. Entretanto, é certo que os valores aceitos por nossos Tribunais e Turmas Recursais, a pretexto de impedir enriquecimento indevido, são na maioria das vezes baixíssimos e refletem na verdade como verdadeiro prêmio ao infrator.


Cremos que essa disparidade e a efetividade das punições – efetividade do próprio instituto do dano moral – somente possam ser corrigidas com a criação de uma penalidade alternativa, a ser fixada pelo magistrado, de modo a penalizar o infrator sem assoberbar a vítima.


Em se tratando de direito consumerista, entendemos pertinente a alteração do Código de Defesa do Consumidor, para incluir, para as ações em que se reconheça a violação do direito do consumidor, uma pena (pena civil ou multa), a ser fixada no caso concreto pelo magistrado – paralelamente a indenização pelos danos morais a que faz jus a vítima –, a ser revertida ao fundo de proteção ao direito do consumidor de que trata o artigo 57 da Lei 8.078/1990.


Dessa forma teríamos um sistema híbrido, mais equilibrado e eficaz: o infrator seria penalizado e tomaria providências eficazes para não reincidir nos seus atos lesivos; a vítima, por sua vez, seria indenizada em valor condizente ao abalo sofrido.

_____________________________________
¹http://www.centraljuridica.com/materia/1611/dano_moral/juiza_nega_indenizacao_consumidora_critica_industria_do_dano.html
² http://www.procon.sp.gov.br/pdf/acs_ranking_2010.pdf

Comentários

  1. O que se deveria fazer, em vez de se rotular as ações da busca pelo direito, de industria do dano moral, que a critica afirma entupir o judiciário, representa a evolução do consumidor, que não está mais se calando diante das injustiças.
    Lamento que os valores concedidos pelos Srs. Ilustres julgadores, insensíveis aos objetivos e propósito das leis, fixam valores que, para os grandes complexos econômicos, nada representam diante do lucro que tem, fazendo vistas grossas e descaso da legislação.
    O que demonstra, mesmo com a condenação, a sensação é de impunidade.

    Prova disso, são as estatísticas dos órgãos de proteção do consumidor e dos sites e blogs de reclamação.
    Deixo a pergunta, até quando essas empresas vão continuar impunes?

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  2. Obrigado pela interação.
    Pertinentes os comentários. No dia a dia do Judiciário, principalmente do Juizado Cível, essas questões são tratadas como de menor importância e de forma objetiva! Esquecem-se da pessoa vitimada e do poderio econômico! Realmente fica a pergunta: "até quando?"

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  3. Ótimo post. Estou fazendo uma pesquisa sobre o assunto e gostaria de indicações sobre autores que pensam e ja trabalham nesse sentido. Se puder indicar, agradeço. =)

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