DJI

Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica: Responsabilização da Empresa por dívidas dos sócios



Como ensinam os professores Fabio Ulhôa Coelho[1] e Rubens Requião[2], os conceitos de personalidade jurídica e autonomia patrimonial surgiram a partir da segunda metade do século XIX nos Direitos Canônico e Alemão, tendo sido adotados pelo direito Brasileiro desde 1916 com a aprovação do hoje revogado Código Civil elaborado pelo ilustre jurista Clovis Bevilacqua.

Destaca Ulhôa Coelho[3] que consiste o instituto da pessoa jurídica simplesmente em uma técnica de separação patrimonial, na qual os direitos e obrigações da pessoa jurídica formam um patrimônio distinto do patrimônio correspondente a seus titulares (associados, sócios, acionistas, etc).  Nesse sentido, por exemplo, o sócio de um clube não responde pessoalmente pelas dívidas do clube mas somente pelo pagamento de sua contribuição mensal,

Aparentemente usual nos dias de hoje, ante a complexidade das relações sociais, tal separação patrimonial é essencial para o correto desenvolvimento de atividades econômicas ou não.   Especialmente no âmbito empresarial, tal distinção, somadas à limitação da responsabilidade dos sócios ao capital investido quando da criação daquela pessoa jurídica são cruciais para o fomento da atividade ao reduzir o risco do empreendimento (tornando mais atrativo investir-se na atividade empresarial, movimentando a economia, gerando novos negócios, novos produtos, novos empregos, novas tecnologias).

De outro lado, como bem alerta o professor Rubens Requião[4], com o surgimento da personalidade jurídica surgem também os problemas decorrentes de seu mau uso, ou seja, do abuso do direito e fraudes através de pessoa jurídica, lesando o direito de terceiros e de toda a sociedade. 

Para coibir tais abusos, baseados nos esboços existentes nas jurisprudências americana e inglesa, os doutrinadores, especialmente os alemães através da sistematização proposta pelo jurista Rolf Serick (em 1955), italianos e espanhóis, debruçaram-se sobre os casos concretos e desenvolveram a doutrina internacionalmente conhecida como “Disregard of Legal Entity”  conhecida no Brasil como a teoria da “Desconsideração da personalidade jurídica”.

Por tal teoria, introduzida no país pelo prof. Requião por volta dos anos 1960, e adotada por Miguel Reale em seu anteprojeto que deu origem ao atual Código Civil, para evitar a manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, sempre que um sócio/diretor utilizar-se indevidamente de tal autonomia para a realização de uma fraude, pode o juiz estender os efeitos da obrigação diretamente à pessoa que operou em abuso de direito, responsabilizando seu patrimônio pessoal daquele sócio/diretor pelo débito.

Tal conceito restou claro no artigo 50 do Código Civil[5], que dispõe:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

No caso, não se opera a dissolução daquela pessoa jurídica/empresa, mas tão somente a extensão dos efeitos para responsabilizar o sócio. Tal extensão ocorre, por exemplo, quando uma empresa realiza uma compra e posteriormente encerra irregularmente suas atividades (sem realizar a falência/dissolução/liquidação) sumindo com todo o patrimônio sem saldar os seus débitos.  No caso, pode o juiz, nos termos do art. 50 transcrito, responsabilizar o sócio pela dívida da sociedade.

 Porém, além dos casos em que os sócios/administradores retiram os bens da sociedade deixando-a insolvente e os colocam em seu patrimônio pessoal, há também casos em que, com o objetivo de aproveitar-se desta autonomia patrimonial, todos os bens (carros, imóveis, dinheiro, etc.) de valor são comprados através da pessoa jurídica ou para ela transferidos, a fim de fraudar credores particulares dos sócios (especialmente ocorrente em casos de dívidas alimentares e para com instituições financeiras).

Visando também coibir o mau uso da personalidade jurídica para furtar-se ao pagamento de débitos dos sócios/administradores, desenvolveu a doutrina a teoria inversa da desconsideração da personalidade jurídica, na qual a autonomia patrimonial da pessoa jurídica é afastada para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio que abusou do instituto[6].  Tal teoria possui duas vertentes, uma consubstanciada no próprio artigo 50 do Código Civil, atuando como uma via de duas mãos e aplicáveis a todos os tipos sociais, e outra consubstanciada na aplicação combinada do art. 1.053 com o art. 1.026 ambos do Código Civil[7], aplicável às sociedades Limitadas com regência supletiva pelo regramento das Sociedades Simples, os quais transcrevemos:
Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.
(...)
Art. 1.026. O credor particular de sócio pode, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer recair a execução sobre o que a este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em liquidação.
Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até noventa dias após aquela liquidação

Sobre a aplicabilidade da desconsideração inversa é a lição do STJ (Superior Tribunal de Justiça), no julgamento do Recurso Especial nº. 948.117[8]. Vejamos:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE.
(...)
III – A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.
IV – Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.
V – A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, “levantar o véu” da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa.
VI – À luz das provas produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular.
VII – Em conclusão, a r. decisão atacada, ao manter a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita, merecendo assim ser mantida por seus próprios fundamentos.
Recurso especial não provido.

A personificação e autonomia patrimonial das empresas, como citado, é um grande avanço da tecnológica jurídica, sendo figura essencial no incentivo à realização da atividade econômica bem como na redução dos custos do exercício da atividade e dos produtos em si, ao minimizar os riscos dos investidores.  

Assim, deve-se concluir que as teorias da desconsideração e da desconsideração inversa da personalidade jurídica são mecanismos essenciais ao equilíbrio das relações jurídicas, como forma de coibir o abuso de direito (mau uso do instituto da autonomia patrimonial), afastando as chamadas “crises” do instituto jurídico da personalidade jurídica.



[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito Civil . São Paulo: Saraiva, 2006. 2.v. p. 231/232.
[2] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial.  São Paulo: Saraiva, 1998. 1.v. p.344/347.
[3] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito Civil . São Paulo: Saraiva, 2006. 2.v. p. 233.
[4] REQUIÃO, Rubens. Op. Cit..
[5] BRASIL.Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm
[6] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 2006. 2.v. p. 45.
[7] BRASIL.Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm
[8] BRASIL.Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma, REsp 948.117/MS, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/06/2010,  publicado no DJ em 03/08/2010.

Comentários

  1. É o meu tema de monografia..

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Estou pensando seriamente em fazer minha monografia sobre o tema...será que existe a desconsideração da personalidade jurídica inversa na responsabilidade tributária?

      Excluir
    2. sim. na minha trato a respeito do tema, como também no direito de família e trabalho

      Excluir
    3. Legal, é um bom tema, se precisar de alguma ajuda ou revisão me coloco à disposição. Abraço

      Excluir
  2. Boa noite. Como bem explicitado no artigo pela transcrição do julgado do STJ: "A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio".

    Entendo que seria aplicável à debitos tributários, desde que estes sejam de responsabilidade do Sócio (e não da sociedade, como é de praxe).

    ResponderExcluir
  3. Boa tarde Felipe! Sou estudante de Direito e estou elaborando minha monografia sobre a desconsideração inversa. Achei este seu artigo muito interessante!
    Gostaria de saber se você por gentileza poderia me ajudar, através de troca de e-mails e referências a conteúdos que enriqueceriam minha monografia.
    Minha intenção é demonstrar o alcance do instituto em outros ramos da ciência do Direito além da empresarial. Já encontrei no Direito de Família.
    Me diga qual é o seu e-mail para que iniciemos assim que possível. Agradeço desde já a atenção!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa tarde Marina, segue meu email: felipe@ferreiraepadovani.com.br

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Direitos do consumidor: garantia de produtos e serviços

Modalidades de extinção do contrato de trabalho

Possibilidade de empresa em recuperação sofrer atos constritivos é tema de repetitivo