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O Estado laico e os símbolos religiosos.

Não obstante a menção de que o texto constitucional de 1988 fora promulgado “sob a proteção de Deus”, constante do preâmbulo da Constituição da República Brasileira, não restam dúvidas de que o Estado Brasileiro se afigura como um estado laico e não confessional.

O Supremo Tribunal Federal, instado sob o tema, decidiu que: "Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa." (ADI 2.076, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15-8-2002, Plenário, DJ de 8-8-2003).

A história comprova a relação de proximidade entre Estado (Poder) e a religião. É inegável a força e a interferência da religião católica na idade média, na difusão das ideias que justificavam a autoridade e a legitimidade do monarca na doutrina de que o Poder do rei derivava da vontade de Deus.

Da mesma forma, em 1534, a criação da Igreja Anglicana decorrente da cisão da Igreja Católica concretizada através do ato de supremacia – ato formal que confiscou as propriedades da Igreja Católica na Inglaterra – denota a necessidade de compasso entre o exercício do Poder e o referendo religioso. Convém lembrar que em razão do conflito havido com o Papa Clemente VII, relacionado com o pedido de anulação de seu casamento com Catarina de Aragão, o Rei Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica para se casar com Ana Bolena e ter descendentes homens, e perpeturar o Poder hereditário da monarquia.

Fato é que até os presentes dias alguns Estados adotam uma religião oficial (ex. Argentina) ou optam pela forte interação entre Poder e religião, caso do Irã. Por outro lado, a Constituição brasileira de 1988 vedou o estabelecimento de culto ou religião oficial (artigo 19, I), bem como assegurou a inviolabilidade e liberdade de crença e do culto religioso, garantindo inclusive a proteção aos locais de culto e suas liturgias (artigo 5º, VI).

O Brasil é um país de tradição cristã, de maioria católica, portanto, com desenvolvimento cultural atrelado ao cristianismo. Comum, portanto, a existência de símbolos cristãos (ex. a Bíblia) e de símbolos cristão-católicos (ex. crucifixos) nos locais públicos e prédios públicos, o que, em tese, fere o estado laico.

Nesse contexto, recentemente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), respondeu a um pedido de providências que objetivava a retirada de crucifixos afixados em plenários e salas de audiências. Decidiu-se que “manter um crucifixo numa sala de audiências públicas de Tribunal de Justiça não torna o Estado – ou o Poder Judiciário – clerical, nem viola o preceito constitucional invocado (CF, art. 19, inciso I)”.

“Pedido de Providências. Pretensão de que se determine aos Tribunais de Justiça a retirada de crucifixos afixados nos Plenários e salas. Alegação de que a aposição de símbolos fere o art. 19, inciso I da CF/88. – “Manter um crucifixo numa sala de audiências públicas de Tribunal de Justiça não torna o Estado – ou o Poder Judiciário – clerical, nem viola o preceito constitucional invocado (CF, art. 19, inciso I), porque a exposição de tal símbolo não ofende o interesse público primário (a sociedade), ao contrário, preserva-o, garantindo interesses individuais culturalmente solidificados e amparados na ordem constitucional, como é o caso deste costume, que representa as tradições de nossa sociedade. Por outro lado, não há, data venia, no ordenamento jurídico pátrio, qualquer proibição para o uso de qualquer símbolo religioso em qualquer ambiente de Órgão do Poder Judiciário, sendo da tradição brasileira a ostentação eventual, sem que, com isso, se observe repúdio da sociedade, que consagra um costume ou comportamento como aceitável” (CNJ – PP 1344, PP 1345, PP 1346 e PP 1362 – Rel. Cons. Oscar Argollo – 14ª Sessão Extraordinária – j. 06.06.2007 – DJU 21.06.2007 – Parte do voto do relator).

Vê-se que o CNJ acolheu a tese jurídica de que a exposição de símbolos religiosos não ofende o interesse público, já que amparado no interesse individual, culturalmente solidificado na ordem constitucional: “a exposição de tal símbolo não ofende o interesse público primário (a sociedade), ao contrário, preserva-o, garantindo interesses individuais culturalmente solidificados e amparados na ordem constitucional, como é o caso deste costume, que representa as tradições de nossa sociedade”.

Adotando tese jurídica diversa, o Conselho da Magistratura do TJ/RS, no PROCESSO: 0139-11/000348-0, da relatoria do Des. CLÁUDIO BALDINO MACIEL, decidiu por determinar a retirada de todos os símbolos religiosos dos prédios e espaços públicos do Poder Judiciário daquele Estado.
PROCESSO: 0139-11/000348-0, da relatoria do Des. CLÁUDIO BALDINO MACIEL.INTERESSADOS: Rede Feminista de Saúde, SOMOS - Comunicação, saúde e Sexualidade, NUANCES - GRUPO PELA LIVRE ORIENTAÇÃO SEXUAL, LIGA BRASILEIRA DE LÉSBICAS, MARCHA MUNDIAL DE MULHERES, THEMIS - ASSESSORIA JURÍDICA E ESTUDOS DE GÊNERO.E M E N T A: EXPEDIENTE ADMINISTRATIVO. PLEITO DE RETIRADA DOS CRUCIFIXOS E DEMAIS SÍMBOLOS RELIGIOSOS EXPOSTOS NOS ESPAÇOS DO PODER JUDICIÁRIO DESTINADOS AO PÚBLICO. ACOLHIMENTO. A presença de crucifixos e demais símbolos religiosos nos espaços do Poder Judiciário destinados ao público não se coaduna com o princípio constitucional da impessoalidade na Administração Pública e com a laicidade do Estado brasileiro, de modo que é impositivo o acolhimento do pleito deduzido por diversas entidades da sociedade civil no sentido de que seja determinada a retirada de tais elementos de cunho religioso das áreas em questão. PEDIDO ACOLHIDO.

Ambas as decisões geraram discussões e emissão de opiniões por juristas de renome. Todavia, por representar alteração na situação até então posta, a decisão do Colendo Conselho da Magistratura Gaúcho chamou a atenção, tendo inclusive sido atacada pela Associação dos Juristas Católicos do Rio Grande do Sul, que requereu a revisão e revogação da decisão e o ajuste à decisão do Conselho Nacional de Justiça, mantendo-se a disposição e exposição dos símbolos religiosos (crucifixos) nos espaços do Poder Judiciário gaúcho. A referida Associação argumenta que:
“O Estado laico não é Estado ateu, pois, no Brasil, consagraram-se grandemente, na pauta axiológica de sua Constituição, os valores que informam sua existência cultural e caracterizam os bens da vida almejados por parcela amplamente majoritária da sua população. Por tal razão, a proibição da presença de crucifixos no espaço público da justiça formal está em desconformidade com a tradição e o espírito constitucionais do Brasil republicano, respeitados por cento e vinte anos”. http://www.conjur.com.br/2012-mar-17/juristas-catolicos-pedem-anulacao-ato-proibe-crucifixos-tj-rs?imprimir=1

Não obstante tenha adotado posição diametralmente oposta à proferida pelo CNJ, a decisão do Conselho da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul não a afronta, já que não há determinação imposta pelo CNJ. O que de fato se tem é o posicionamento do CNJ reconhecendo que não há violação na manutenção dos símbolos religiosos nos espaços públicos. No entanto, nada obsta que a administração pública determine a retirada de tais símbolos religiosos no âmbito de sua competência.

A situação nos remete a duas questões de relevo: o alcance do laicismo e a isonomia na diversidade religiosa.

Primeiramente temos que considerar que o estado laico, de fato, não é sinônimo de estado ateu. Laico é o Estado oficialmente neutro em relação às questões religiosas, não apoiando nem se opondo a nenhuma religião.

A atual ordem constitucional brasileira presa pela liberdade religiosa (artigo 5º, VI), ao assegurar a inviolabilidade e liberdade de consciência e crença e o livre exercício dos cultos religiosos, bem como o direito subjetivo de não adotar nenhuma religião. Essa liberdade de crença ou de descrença deve ser analisa em cotejo com outros princípios mestres da Constituição, como por exemplo o princípio da impessoalidade da administração pública (artigo 37, II da Constituição Federal).

Sob essa ótica, ao nosso ver, de fato não há impeditivo constitucional algum para a exposição do símbolos religiosos em espaços públicos, pois o conflito entre os dispositivos constitucionais de liberdade religiosa, de liberdade de expressão e da impessoalidade, devem ser resolvidos no caso concreto, considerando a unidade da Constituição, pautando-se pela ponderação de valores nela inserta. Nesse particular, temos que deva prevalecer, no caso concreto, o direito à cultura e a tradição cristã arraigada em nosso meio, em detrimento ao direito de descrença.

Entretanto, a pluralidade de doutrinas religiosas, a adoção de símbolos diversos, com o rechaço do utilizado por outras religiões, é corolário lógico da liberdade religiosa e do direito de estabelecimento de culto, bem como da firme posição constitucional de que o Estado não adotará rito ou religão oficial (artigo 19, I da Constituição).

Aqui, parece-nos, devam prevalecer os princípios da impessoalidade e da isonomia, sem privilégio a qualquer denominação religiosa. Forçoso concluir que é impossível ao Estado, caso opte por manter a utilização dos símbolos religiosos, observar a igualdade na exposição de todas as religiões. Ademais, tal opção representaria um retrocesso.

Assim, não sendo possível assegurar a igualdade de participação ou de exposição, caso pleiteadas, não resta outra opção senão a de garantir que nenhuma denominação religiosa se sobressaia – como imperativo do Estado laico – com a retirada de símbolos, quaisquer que sejam – exemplos: Bíblias, cruxificos, imagens sacras, do candomblé, budismo, marcas de igrejas ou religiões –, das dependências dos órgãos públicos.

Entendemos que, diferentemente do que ocorre com a manutenção dos feriados religiosos no calendário oficial e a manutenção de monumentos com caracteres religiosos em praças públicas, que se justificam diante do direito de cultura e história do povo brasileiro, a exposição de imagens ou qualquer elementos que represente uma determinada religião (bens móveis ou bens que não aderem ao imóvel), em prédios públicos, não se coadunam como estado laico brasileiro.

Forçoso concluir, portanto, que somente a retirada de todo e qualquer símbolo religioso, presentes em orgãos públicos, possa garantir o estado laico, a liberdade religiosa e de crença, bem como a obervância dos princípios da impessoalidade da administração pública e igualdade religiosa.

Comentários

  1. o argumento de que por não se poder garantir a igualdade de exposição de símbolos de várias religiões nas salas de julgamento levaria a conclusão de que não se deveria permitir nenhum símbolo, é claramente equivocada. mais de noventa por cento da população é cristã e naturalmente nunca (dentro deste quadro) haverá igualdade de representatividade de religiões. a minoria que reclame, fundamentadamente, o que bem entender, menos a supressão do símbolo cristão que é expressão cultural da ampla maioria. a conclusão do texto despreza a regra básica dos regimes republicanos da representatividade e da prevalência da posição majoritária, sem contudo suprimir direito da minoria. expor o crucifixo, não é suprimir direito de ninguém, ao contrário, é garantir o livre exercício de expressão cultural da maioria. a constituição de 88 falhou em não estabelecer que o Brasil é uma República Federativa cristã. assim, acabaria logo com esta discussão que, ao que vejo, gira em torno de conceitos que não foram bem compreendidos por aqueles que acham que laicidade é sinônimo de ateísmo. quanto desconhecimento ou quem sabe má fé...

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  2. Concordo plenamente que muito da discussão se deve a confusão entre os conceitos de laicidade e ateísmo. Tanto o é que ressaltei que não podem ser tratados como sinônimos.
    É fato que o princípio republicano e fatores históricos devem permear as discussões. No entanto, discordo de vosso entendimento no que tange ao posicionamento do Constituinte que, ao meu ver, foi acertado.
    Ainda que figure entre a parcela cristã da população, in casu, católica, reconheço que parte expressiva desse percentual (90% por você mencionado) é composta por cristãos evangélicos ou protestantes.
    Assim, entendo o princípio republicano, ao mais das vezes, pode nos conduzir a decisões de inconstitucionalidades circunstanciais, à medida que, bastaria que os cristãos evangélicos passassem, em número, a representar a maioria, para se refutar ou justificar novos símbolos representativos da nova maioria.
    Sem embargo de opiniões divergentes e de adotar posicionamento contramajoritário, interpreto o texto constitucional no sentido de que nos prédios e espaços públicos devam prevalecer os princípios da impessoalidade e da igualdade. O que não aplico, por exemplo, para mesas ou espaços reservados do servidor, onde há de prevalecer a liberdade individual.
    Cito como exemplo o gabinete da eminente Min. Cármen Lúcia, que ostenta sobre uma de suas mesas uma imagem, s.m.j, de Santa Rita.

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