Eutanásia: dimensão ético-política
Artigo de autoria do MM Juiz André Gonçalves Fernandes.
Publicado originamente no Jornal Correio Popular em 04/07/2012
Disponível em:
http://correio.rac.com.br/correio-popular/opiniao/808/0.html
Nos debates públicos sobre a eutanásia durante a reforma do
Código Penal, foram frequentemente invocadas questões estranhas ao tema. Ninguém
nega que qualquer indivíduo tem, em princípio, o direito de recusar tratamentos
que, embora venham com a chancela médica, podem ser por ele tidos como inconvenientes.
Compete a cada um avaliar se a recusa a um tratamento, num dado caso, é compatível
com o dever ético de cuidar de sua própria saúde.
Mas os campos jurídico e político devem reconhecer a todos a
faculdade de autodeterminação no âmbito terapêutico, que se expressa no princípio
ético do consentimento informado, o qual simboliza a humanização que deve haver
na relação entre médico e paciente. Nesse momento, está em jogo o princípio da
liberdade individual, em virtude do qual tampouco se pode obrigar o médico a atuar
profissionalmente contra o estado da ciência e sua consciência.
O equilíbrio da relação é frágil. Na dúvida do acerto da decisão
do enfermo ou da atuação do médico, convém que o assunto seja submetido à
apreciação judicial, a fim de se evitar a coação privada.
Há também um amplo acordo sobre o fato de que não existe
sentido em insistir com tratamentos de eficácia terapêutica duvidosa ou inútil em
pacientes cuja morte iminente é inevitável. Nesses casos, a única atitude
acertada é a de aceitar a situação terminal do paciente, aliviando seu sofrimento
por meio de cuidados paliativos e prestando o apoio emocional necessário para
assegurar que seus últimos momentos de vida sejam percorridos da melhor maneira
possível.
Também pode haver uma legítima diversidade de opiniões
acerca da intervenção médica mais conveniente no estágio terminal, até porque, nessa
situação, o tempo não é um aliado do médico. A superação do problema deve ser feita
por meio de um diálogo claro e sereno entre os médicos, o paciente, caso seja
capaz de compreender e avaliar a sua situação, e a família.
Esse relacionamento é denominado apropriadamente como
“aliança terapêutica”. Em princípio, é preferível que a legislação não tenha
que adentrar nesse nível de particularidade, porque há o risco de se
estabelecer princípios que não guardem relação com a realidade ou princípios cuja
rigidez seja difícil de ser atenuada pela equidade.
Tome-se, por exemplo, uma expressão muito comum em algumas
legislações europeias: o “direito à sedação terminal”. Na mesma linha de
raciocínio, teria que se falar também em “direito a antibióticos" ou
“direito a antiinflamatório". Caso se pretenda dizer que esses medicamentos
devam ser administrados quando houver prescrição médica, os termos seriam aceitáveis.
Mas, na maioria dos casos, isso é desnecessário, porque a medicina deve buscar
a cura possível para o paciente.
Tenho a impressão de que o uso dessas expressões num texto
legislativo parece indicar que o enfermo ou sua família possam reivindicar o uso
desses princípios farmacológicos frente ao médico que, segundo sua consciência
e o estado da ciência, não os considera indicados. Existe o perigo de o
hospital ser visto como uma espécie de restaurante, onde o cliente chega e ordena
o que lhe bem apetece e, por outro lado, reduz a importância do papel do médico
a uma espécie de garçom que serve o que lhe é pedido.
Uma concepção de assistência médica definida assim pelas
leis de um país constitui-ria um grave problema ético e político.
Se a eutanásia consiste na ação ou na omissão dos cuidados
básicos, com o fim de direta e intencionalmente provocar a morte de outra pessoa,
o problema ético-político começa quando a ação ou a omissão de buscar diretamente
a morte ganha uma vestimenta legal e se agrava quando se pretende ainda que o sistema
público de saúde deva ocupar-se de buscar a morte de seus pacientes.
Por exemplo, uma família, já saturada com anos de cuidados
médicos de um idoso acamado e inválido, poderia ingressar com aquele parente naquelas
condições e, passados alguns dias, ele seria devolvido bem-acondicionado num
caixão de alabastro. A justificativa poderia ser a de que aquele quadro clínico
era tão negativo e sem sentido, que seria bom, e conforme o direito a adoção de
um protocolo dirigido intencionalmente para acabar com a vida daquele doente.
Uma enfermidade poderia converter-se num mal de uma dimensão
tal que “justificaria” a transgressão do princípio jurídico do não matar o semelhante.
Na raiz dessa postura e do problema ético-político, há uma teoria: existem vidas
dignas de serem vividas e outras não. E uma tentação: conferir a alguém um
poder arbitrário sobre a vida e a morte das pessoas. Com respeito à divergência,
é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de
Direito e professor do Instituto
Internacional de Ciências Sociais
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