Eutanásia: liberdade a favor da vida
Artigo de autoria do MM Juiz André Gonçalves Fernandes.
Publicado originamente no Jornal Correio Popular em 11/07/2012
Disponível em: http://correio.rac.com.br/correio-popular/opiniao/824/0.html
Desde o ponto de vista ético-político, creio que a tradição
jurídica dos países civilizados criou fórmulas várias para a resolução de
conflitos de todos os tipos: criminais, civis, religiosos, diplomáticos,
econômicos e outros. Mas, ao longo dos séculos, foi-se consolidando sempre mais
a ideia de que a justa solução para qualquer conflito, com raras exceções (como
a legítima defesa), tem um limite que não pode ser superado. E esse limite é o
princípio do respeito à vida.
Este princípio tem desempenhado um papel pacificador na
medida em que sempre foi considerado como universalmente válido, mesmo em casos
extremos. Se alguém pensa que é conforme ao direito que tal princípio possa ser
ignorado alguma vez, nada impede que ele venha a ser ignorado mais vezes. Se
este princípio pode perder sua vigência por esta ou por aquela razão, então
poderá perder por outras, dependendo das concepções e da sensibilidade dos
homens de cada período histórico.
A experiência tem mostrado que, nos países onde existe a
possibilidade legal de finalizar a vida daqueles que pediam por isso em casos
verdadeiramente extremos, gradualmente foi se passando a acabar com a vida
também daqueles que não a requeriam.
Se existem situações que justificam a invalidade do
princípio do respeito à vida, logo, a especificação de cada uma dessas
situações passa a ser uma questão aberta, a respeito da qual cada pessoa, cada
sociedade, cada tribunal e cada Estado poderá chegar às suas próprias
conclusões.
Contudo, existe ainda outra razão em favor daquele princípio.
A política moderna nasceu com a intenção de que os homens se convencessem de
que era melhor para eles renunciarem à sua natural agressividade, à autotutela,
à busca intransigente de seus interesses, a fim de que o Estado assumisse o
monopólio da violência e, assim, pudesse mais eficazmente defender a vida, a
liberdade e a justiça, segundo uma ordem capaz de coordenar justamente os
interesses e expectativas de todos os envolvidos.
O Estado foi criado para assegurar uma série de bens, como a
vida, a liberdade, a justiça, a saúde e outros. E não para promover a morte de
seus cidadãos. Em nossa realidade social, há muita desigualdade, exploração,
arbítrio e contradições. Mas tais realidades sempre foram vistas como
contrárias ao direito. O Estado, por via de seu sistema público de saúde, não
pode ter um serviço para abreviar a vida de seus cidadãos.
Cada um pense da forma que melhor entender. Quem atuar, nas
circunstâncias de uma eutanásia, em estado de necessidade ou como vítima do
desespero, que goze das circunstâncias atenuantes cabíveis e de toda
compreensão diante de um magistrado. Mas para os profissionais da saúde que
pertençam a tais tipos de estruturas públicas de saúde, a situação é bem
diferente, porque, na maioria das vezes, eles têm o domínio do fato.
Alegar a laicidade estatal só serve para aumentar a
confusão. Norberto Bobbio, que conhecia, como poucos, os fundamentos da
política moderna e que, pessoalmente, não era religioso, escreveu: “Fico
surpreso que os não-religiosos deixem para os religiosos o privilégio e a honra
de afirmar que não se deve matar”. Igualmente equivocado é invocar a liberdade
e o direito à autodeterminação para justificar a eutanásia.
Se o Estado moderno nasceu para tutelar a vida e a
liberdade, não se pode admitir a liberdade de matar, assim como não se admite a
liberdade de roubar ou de empregar a violência. A liberdade é a forma mais
digna de vida que existe neste planeta, a vida humana.
Se a liberdade passa a ser exercida contra a vida,
converte-se numa força contraditória e que não pode ser adotada como princípio
de estruturação da vida social e política. Ir além deste ponto de apoio só
redundará em tentativas fracassadas e indicará a medida do que queremos
enquanto civilização: a medida de um paciente que precisa de tratamento
intensivo. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de
Direito e professor do Instituto
Internacional de Ciências Sociais
Grato pela publicação do artigo e em poder colaborar para o debate público do assunto
ResponderExcluirSomos nós que temos que agradecer a autorização dada para republicação dos relevantes artigos
ExcluirRelevante o tema. Excelente o texto.
ExcluirAs discussões, os debates e os argumentos técnicos sobre a eutanásia são deveras confusos e inconclusivos.
A etiologia da palavra: boa morte, morte piedosa ou morte digna, têm diversos significados e geraram, em determinados momentos ou debates, outras palavras quais sejam: distanásia (prolongamento artificial do processo de morte), ortotanásia (morte pelo seu processo natural, mas provocada/antecipada por outros meios) mistanásia (prolongamento da vida por meios artificiais, de forma dolorosa) etc.
Independe do posicionamento adotado – contrário ou favorável à prática da eutanásia –, preocupa a delimitação do que viria a ser considerada a eutanásia.
A vontade da pessoa em estado de fragilidade, decorrente da doença, seria tida como válida, ou exigir-se-ia a existência de diretivas de vontades previamente ordenadas (o testamento vital)?
Nos casos em que a pessoa esteja impossibilitada de exprimir vontade, os familiares teriam o poder de determinar a prática da eutanásia? E em caso de divergência?
São muitas as variantes!