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Eutanásia: liberdade a favor da vida

Artigo de autoria do MM Juiz André Gonçalves Fernandes. 
Publicado originamente no Jornal Correio Popular em 11/07/2012

Desde o ponto de vista ético-político, creio que a tradição jurídica dos países civilizados criou fórmulas várias para a resolução de conflitos de todos os tipos: criminais, civis, religiosos, diplomáticos, econômicos e outros. Mas, ao longo dos séculos, foi-se consolidando sempre mais a ideia de que a justa solução para qualquer conflito, com raras exceções (como a legítima defesa), tem um limite que não pode ser superado. E esse limite é o princípio do respeito à vida.

Este princípio tem desempenhado um papel pacificador na medida em que sempre foi considerado como universalmente válido, mesmo em casos extremos. Se alguém pensa que é conforme ao direito que tal princípio possa ser ignorado alguma vez, nada impede que ele venha a ser ignorado mais vezes. Se este princípio pode perder sua vigência por esta ou por aquela razão, então poderá perder por outras, dependendo das concepções e da sensibilidade dos homens de cada período histórico.

A experiência tem mostrado que, nos países onde existe a possibilidade legal de finalizar a vida daqueles que pediam por isso em casos verdadeiramente extremos, gradualmente foi se passando a acabar com a vida também daqueles que não a requeriam.

Se existem situações que justificam a invalidade do princípio do respeito à vida, logo, a especificação de cada uma dessas situações passa a ser uma questão aberta, a respeito da qual cada pessoa, cada sociedade, cada tribunal e cada Estado poderá chegar às suas próprias conclusões.

Contudo, existe ainda outra razão em favor daquele princípio. A política moderna nasceu com a intenção de que os homens se convencessem de que era melhor para eles renunciarem à sua natural agressividade, à autotutela, à busca intransigente de seus interesses, a fim de que o Estado assumisse o monopólio da violência e, assim, pudesse mais eficazmente defender a vida, a liberdade e a justiça, segundo uma ordem capaz de coordenar justamente os interesses e expectativas de todos os envolvidos.

O Estado foi criado para assegurar uma série de bens, como a vida, a liberdade, a justiça, a saúde e outros. E não para promover a morte de seus cidadãos. Em nossa realidade social, há muita desigualdade, exploração, arbítrio e contradições. Mas tais realidades sempre foram vistas como contrárias ao direito. O Estado, por via de seu sistema público de saúde, não pode ter um serviço para abreviar a vida de seus cidadãos.
Cada um pense da forma que melhor entender. Quem atuar, nas circunstâncias de uma eutanásia, em estado de necessidade ou como vítima do desespero, que goze das circunstâncias atenuantes cabíveis e de toda compreensão diante de um magistrado. Mas para os profissionais da saúde que pertençam a tais tipos de estruturas públicas de saúde, a situação é bem diferente, porque, na maioria das vezes, eles têm o domínio do fato.

Alegar a laicidade estatal só serve para aumentar a confusão. Norberto Bobbio, que conhecia, como poucos, os fundamentos da política moderna e que, pessoalmente, não era religioso, escreveu: “Fico surpreso que os não-religiosos deixem para os religiosos o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar”. Igualmente equivocado é invocar a liberdade e o direito à autodeterminação para justificar a eutanásia.

Se o Estado moderno nasceu para tutelar a vida e a liberdade, não se pode admitir a liberdade de matar, assim como não se admite a liberdade de roubar ou de empregar a violência. A liberdade é a forma mais digna de vida que existe neste planeta, a vida humana.

Se a liberdade passa a ser exercida contra a vida, converte-se numa força contraditória e que não pode ser adotada como princípio de estruturação da vida social e política. Ir além deste ponto de apoio só redundará em tentativas fracassadas e indicará a medida do que queremos enquanto civilização: a medida de um paciente que precisa de tratamento intensivo. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de
Direito e professor do Instituto
Internacional de Ciências Sociais

Comentários

  1. Grato pela publicação do artigo e em poder colaborar para o debate público do assunto

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    1. Somos nós que temos que agradecer a autorização dada para republicação dos relevantes artigos

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    2. Relevante o tema. Excelente o texto.
      As discussões, os debates e os argumentos técnicos sobre a eutanásia são deveras confusos e inconclusivos.
      A etiologia da palavra: boa morte, morte piedosa ou morte digna, têm diversos significados e geraram, em determinados momentos ou debates, outras palavras quais sejam: distanásia (prolongamento artificial do processo de morte), ortotanásia (morte pelo seu processo natural, mas provocada/antecipada por outros meios) mistanásia (prolongamento da vida por meios artificiais, de forma dolorosa) etc.
      Independe do posicionamento adotado – contrário ou favorável à prática da eutanásia –, preocupa a delimitação do que viria a ser considerada a eutanásia.
      A vontade da pessoa em estado de fragilidade, decorrente da doença, seria tida como válida, ou exigir-se-ia a existência de diretivas de vontades previamente ordenadas (o testamento vital)?
      Nos casos em que a pessoa esteja impossibilitada de exprimir vontade, os familiares teriam o poder de determinar a prática da eutanásia? E em caso de divergência?

      São muitas as variantes!

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