Regime de bens e divisão da herança: dúvidas jurídicas no fim do casamento
A notícia refere-se aos seguintes processos:
REsp 954567
REsp 975964
REsp 1117563
REsp 1111095
Fonte: Coordenadoria de Editoria e Imprensa – STJ 28/10/2012 -
08h00
Antes da
celebração do casamento, os noivos têm a possibilidade de escolher o regime de
bens a ser adotado, que determinará se haverá ou não a comunicação
(compartilhamento) do patrimônio de ambos durante a vigência do matrimônio.
Além disso, o regime escolhido servirá para administrar a partilha de bens
quando da dissolução do vínculo conjugal, tanto pela morte de um dos cônjuges, como pela separação.
O
instituto, previsto nos artigos 1.639 a 1.688 do Código Civil de 2002 (CC/02),
integra o direito de família, que regula a celebração do casamento e os efeitos
que dele resultam, inclusive o direito de meação (metade dos bens comuns) –
reconhecido ao cônjuge ou companheiro, mas condicionado ao regime de bens
estipulado.
A
legislação brasileira prevê quatro possibilidades de regime matrimonial:
comunhão universal de bens (artigo 1.667 do CC), comunhão parcial (artigo
1.658), separação de bens – voluntária (artigo 1.687) ou obrigatória (artigo
1.641, inciso II) – e participação final nos bens (artigo 1.672).
A escolha
feita pelo casal também exerce influência no momento da sucessão (transmissão
da herança), prevista nos artigos 1.784 a 1.856 do CC/02, que somente ocorre
com a morte de um dos cônjuges.
Segundo o
ministro Luis Felipe Salomão, da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça
(STJ), “existe, no plano sucessório, influência inegável do regime de bens no
casamento, não se podendo afirmar que são absolutamente independentes e sem
relacionamento, no tocante às causas e aos efeitos, esses institutos que a lei
particulariza nos direitos de família e das sucessões”.
Regime legal
Antes da
Lei 6.515/77 (Lei do Divórcio), caso não houvesse manifestação de vontade
contrária, o regime legal de bens era o da comunhão universal – o cônjuge não
concorre à herança, pois já detém a meação de todo o patrimônio do casal. A
partir da vigência dessa lei, o regime legal passou a ser o da comunhão
parcial, inclusive para os casos em que for reconhecida união estável (artigos
1.640 e 1.725 do CC).
De acordo
com o ministro Massami Uyeda, da Terceira Turma do STJ, “enquanto na herança há
substituição da propriedade da coisa, na meação não, pois ela permanece com seu
dono”.
No
julgamento do Recurso Especial (REsp) 954.567, o ministro mencionou que o CC/02,
ao contrário do CC/1916, trouxe importante inovação ao elevar o cônjuge ao
patamar de concorrente dos descendentes e dos ascendentes na sucessão legítima
(herança). “Com isso, passou-se a privilegiar as pessoas que, apesar de não
terem grau de parentesco, são o eixo central da família”, afirmou.
Isso porque
o artigo 1.829, inciso I, dispõe que a sucessão legítima é concedida aos
descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente (exceto se casado em
regime de comunhão universal, em separação obrigatória de bens – quando um dos
cônjuges tiver mais de 70 anos ao se casar – ou se, no regime de comunhão
parcial, o autor da herança não tiver deixado bens particulares).
O inciso II
do mesmo artigo determina que, na falta de descendentes, a herança seja
concedida aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente,
independentemente do regime de bens adotado no casamento.
União estável
Em relação
à união estável, o artigo 1.790 do CC/02 estabelece que, além da meação, o
companheiro participa da herança do outro, em relação aos bens adquiridos na
vigência do relacionamento.
Nessa
hipótese, o companheiro pode concorrer com filhos comuns, na mesma proporção;
com descendentes somente do autor da herança, tendo direito à metade do que
couber ao filho; e com outros parentes, tendo direito a um terço da herança.
No
julgamento do REsp 975.964, a ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do
STJ, analisou um caso em que a suposta ex-companheira de um falecido pretendia
concorrer à sua herança. A ação de reconhecimento da união estável, quando da
interposição do recurso especial, estava pendente de julgamento.
Consta no
processo que o falecido havia deixado um considerável patrimônio, constituído
de imóveis urbanos, várias fazendas e milhares de cabeças de gado. Como não possuía
descendentes nem ascendentes, quatro irmãs e dois sobrinhos – filhos de duas
irmãs já falecidas – seriam os sucessores.
Entretanto,
a suposta ex-companheira do falecido moveu ação buscando sua admissão no
inventário, ao argumento de ter convivido com ele, em união estável, por mais
de 30 anos. Além disso, alegou que, na data da abertura da sucessão, estava na
posse e administração dos bens deixados por ele.
Meação
De acordo
com a ministra Nancy Andrighi, com a morte de um dos companheiros, entrega-se
ao companheiro sobrevivo a meação, que não se transmite aos herdeiros do
falecido. “Só então, defere-se a herança aos herdeiros do falecido, conforme as
normas que regem o direito das sucessões”, afirmou.
Ela
explicou que a meação não integra a herança e, por consequência, independe
dela. “Consiste a meação na separação da parte que cabe ao companheiro
sobrevivente na comunhão de bens do casal, que começa a vigorar desde o início
da união estável e se extingue com a morte de um dos companheiros. A herança,
diversamente, é a parte do patrimônio que pertencia ao companheiro falecido,
devendo ser transmitida aos seus sucessores legítimos ou testamentários”,
esclareceu.
Para
resolver o conflito, a Terceira Turma determinou que a posse e administração
dos bens que integravam a provável meação deveriam ser mantidos sob a
responsabilidade da ex-companheira, principalmente por ser fonte de seu
sustento, devendo ela requerer autorização para fazer qualquer alienação, além
de prestar contas dos bens sob sua administração.
Regras de sucessão
A regra do
artigo 1.829, inciso I, do CC, que regula a sucessão quando há casamento em
comunhão parcial, tem sido alvo de interpretações diversas. Para
alguns, pode parecer que a regra do artigo 1.790, que trata da sucessão quando
há união estável, seja mais favorável.
No
julgamento do REsp 1.117.563, a ministra Nancy Andrighi afirmou que não é
possível dizer, com base apenas nas duas regras de sucessão, que a união
estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses, “porquanto o casamento
comporta inúmeros outros benefícios cuja mensuração é difícil”.
Para a
ministra, há uma linha de interpretação, a qual ela defende, que toma em
consideração a vontade manifestada no momento da celebração do casamento, como norte para a
interpretação das regras sucessórias.
Companheira e filha
No caso
específico, o autor da herança deixou uma companheira, com quem viveu por mais
de 30 anos, e uma filha, fruto de casamento anterior. Após sua morte, a filha
buscou em juízo a titularidade da herança.
O juiz de
primeiro grau determinou que o patrimônio do falecido, adquirido na vigência da
união estável, fosse dividido da seguinte forma: 50% para a companheira
(correspondente à meação) e o remanescente dividido entre ela e a filha, na
proporção de dois terços para a filha e um terço para a companheira.
Ao analisar
o caso, Nancy Andrighi concluiu que, se a companheira tivesse se casado com o
falecido, as regras quanto ao cálculo do montante da herança seriam exatamente
as mesmas.
Ou seja, a
divisão de 66% dos bens para a companheira e de 33% para a filha diz respeito
apenas ao patrimônio adquirido durante a união estável. “O patrimônio
particular do falecido não se comunica com a companheira, nem a título de
meação, nem a título de herança. Tais bens serão integralmente transferidos à
filha”, afirmou.
De acordo
com a ministra, a melhor interpretação do artigo 1.829, inciso I, é a que
valoriza a vontade das partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta,
tanto na vida quanto na morte dos cônjuges.
“Desse
modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o
postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o
direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja
ou não bens particulares, partilháveis estes unicamente entre os descendentes”,
mencionou.
Vontade do casal
Para o
desembargador convocado Honildo Amaral de Mello Castro (já aposentado), “não há
como dissociar o direito sucessório dos regimes de bens do casamento, de modo
que se tenha após a morte o que, em vida, não se pretendeu”.
Ao proferir
seu voto no julgamento de um recurso especial em 2011 (o número não é divulgado
em razão de segredo judicial), ele divergiu do entendimento da Terceira Turma,
afirmando que, se a opção feita pelo casal for pela comunhão parcial de bens,
ocorrendo a morte de um dos cônjuges, ao sobrevivente é garantida somente a
meação dos bens comuns – adquiridos na vigência do casamento.
No caso, o
Tribunal de Justiça do Distrito Federal reformou sentença de primeiro grau para
permitir a concorrência, na sucessão legítima, entre cônjuge sobrevivente,
casado em regime de comunhão parcial, e filha exclusiva do de cujus (autor da
herança), sobre a totalidade da herança.
A menor,
representada por sua mãe, recorreu ao STJ contra essa decisão, sustentando que,
além da meação, o cônjuge sobrevivente somente concorre em relação aos bens
particulares do falecido, conforme a decisão proferida em primeiro grau.
Interpretação
Em seu
entendimento, a decisão que concedeu ao cônjuge sobrevivente, além da sua
meação, direitos sobre todo o acervo da herança do falecido, além de ferir
legislação federal, desrespeitou a autonomia de vontade do casal quando da
escolha do regime de comunhão parcial de bens.
O
desembargador explicou que, na sucessão legítima sob o regime de comunhão
parcial, não há concorrência em relação à herança, nem mesmo em relação aos
bens particulares (adquiridos antes do casamento), visto que o cônjuge
sobrevivente já está amparado pela meação. “Os bens particulares dos cônjuges
são, em regra, incomunicáveis em razão do regime convencionado em vida pelo
casal”, afirmou.
Apesar
disso, ele mencionou que existe exceção a essa regra. Se inexistentes bens
comuns ou herança a partilhar, e o falecido deixar apenas bens particulares, a
concorrência é permitida, “tendo em vista o caráter protecionista da norma que
visa não desamparar o sobrevivente nessas situações excepcionais”.
Com esse
entendimento, a Quarta Turma conheceu parcialmente o recurso especial e, nessa
parte, deu-lhe provimento. O desembargador foi acompanhado pelos ministros Luis
Felipe Salomão e João Otávio de Noronha.
Contra essa
decisão, há embargo de divergência pendente de julgamento na Segunda Seção do
STJ, composta pelos ministros da Terceira e da
Quarta Turma.
Proporção do direito
É possível
que a companheira receba verbas do trabalho pessoal do falecido por herança? Em
caso positivo, concorrendo com o único filho do de cujus, qual a proporção do
seu direito?
A Quarta
Turma do STJ entendeu que sim. “Concorrendo a companheira com o descendente
exclusivo do autor da herança – calculada esta sobre todo o patrimônio
adquirido pelo falecido durante a convivência –, cabe-lhe a metade da
quota-parte destinada ao herdeiro, vale dizer, um terço do patrimônio do de
cujus”, afirmou o ministro Luis Felipe Salomão em julgamento de 2011 (recurso
especial que também tramitou em segredo).
No caso
analisado, a herança do falecido era composta de proventos e diferenças
salariais, resultado do seu trabalho no Ministério Público, não recebido em
vida. Após ser habilitado como
único herdeiro necessário, o filho pediu em juízo o levantamento dos valores
deixados pelo pai.
O magistrado
indeferiu o pedido, fundamentando que a condição de único herdeiro necessário
não estava comprovada, visto que havia ação declaratória de união estável
pendente. O tribunal estadual entendeu que, se fosse provada e reconhecida a
união estável, a companheira teria direito a 50% do valor da herança.
Distinção
O ministro
Salomão explicou que o artigo 1.659, inciso VI, do CC, segundo o qual, os
proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge ficam excluídos da comunhão,
refere-se ao regime de comunhão parcial de bens.
Ele disse
que o dispositivo não pode ser interpretado de forma conjunta com o disposto no
artigo 1.790, inciso II, do CC/02, que dispõe a respeito da disciplina dos
direitos sucessórios na união estável.
Após
estabelecer a distinção dos dispositivos, ele afirmou que o caso específico
correspondia ao direito sucessório. Por essa razão, a regra do artigo 1.659,
inciso VI, estaria afastada, cabendo à companheira um terço do valor da
herança.
Separação de bens
Um casal
firmou pacto antenupcial em 1950, no qual declararam que seu casamento seria
regido pela completa separação de bens. Dessa forma, todos os bens, presentes e
futuros, seriam incomunicáveis, bem como
os seus rendimentos, podendo cada cônjuge livremente dispor deles, sem
intervenção do outro.
Em 2001,
passados mais de 50 anos de relacionamento, o esposo decidiu elaborar
testamento, para deixar todos os seus bens para um sobrinho, firmando,
entretanto, cláusula de usufruto vitalício em favor da esposa.
O autor da
herança faleceu em maio de 2004, quando foi aberta sua sucessão, com apresentação
do testamento. Quase quatro meses depois, sua esposa faleceu, abrindo-se também
a sucessão, na qual estavam habilitados 11 sobrinhos, filhos de seus irmãos já
falecidos.
Nova legislação
O Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro reformou a sentença de primeiro grau para
habilitar o espólio da mulher no inventário dos bens do esposo, sob o
fundamento de que, como as mortes ocorreram na vigência do novo Código Civil,
prevaleceria o novo entendimento, segundo o qual o cônjuge sobrevivente é
equiparado a herdeiro necessário, fazendo jus à meação, independentemente do
regime de bens.
No REsp
1.111.095, o espólio do falecido sustentou que, no regime da separação
convencional de bens, o cônjuge sobrevivente jamais poderá ser considerado
herdeiro necessário. Alegou que a manifestação de vontade do testador, feita de
acordo com a legislação vigente à época, não poderia ser alterada pela nova
legislação.
O ministro
Fernando Gonçalves (hoje aposentado) explicou que, baseado em interpretação
literal da norma do artigo 1.829 do CC/02, a esposa seria herdeira necessária,
em respeito ao regime de separação convencional de bens.
Entretanto,
segundo o ministro, essa interpretação da regra transforma a sucessão em uma
espécie de proteção previdenciária, visto que concede liberdade de
autodeterminação em vida, mas retira essa liberdade com o advento da morte.
Diante
disso, a Quarta Turma deu provimento ao recurso, para indeferir o pedido de
habilitação do espólio da mulher no inventário de bens deixado pelo seu esposo.
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